Os movimentos de auditoria da dívida surgiram como um meio de se opor à narrativa oficial sobre a obrigatoriedade inquestionável de pagar a dívida. Embora pareça ser um ato exclusivamente técnico, o objetivo das auditorias não é um exercício de contabilidade rotineira, mas sim uma tentativa de iniciar um amplo movimento de participação popular para reforçar os processos democráticos e confrontar o poder financeiro instalado. Os ‘auditores’ são todas as pessoas que queiram participar, representantes de movimentos sociais e do movimento sindical, empregados, desempregados, etc. As auditorias da dívida são ferramentas para envolver as pessoas na investigação sobre o impacto que o endividamento tem tido sobre a economia e a população. Uma nova geração de movimentos de luta contra a dívida, que colocou a auditoria no centro das suas atividades, surgiu nos últimos anos, inspirada pelas metas e objetivos dos movimentos pela justiça global contra o endividamento em curso nas últimas duas décadas, por exemplo, o Jubilee 2000, o CADTM e o Jubileu Sul. Essas organizações há muito tempo lutam contra o uso e abuso da dívida como transferência ilegítima de recursos, desencadeando ações como a Who Owes Who (“Quem Deve a Quem”) para desafiar e reverter o discurso tradicional de que os devedores devem aos credores (Millet-Toussaint, 2004). Os movimentos pela justiça global contra a dívida criaram todo tipo de iniciativas para anular dívidas ilegítimas e injustas, deixando atrás de si uma vasta experiência. Exemplos emblemáticos que inspiraram os atuais movimentos de luta contra a dívida incluem iniciativas oficiais, tais como a Comissão de Auditoria Integral de Crédito Público do Equador (CAIC), ou as iniciativas cidadãs do Brasil ou das Filipinas. Em 2012, havia uma grande diversidade de grupos na Europa de auditoria cidadã em atividade; uma plataforma com 12 países participantes, alguns com mais de uma iniciativa, resolveu unir esforços e partilhar as experiências das redes e movimentos participantes. A International Citizen Audit Network (“Rede Internacional de auditorias cidadãs” / ICAN) foi, num primeiro momento, alojada pelo CADTM na Bélgica, e criou o espaço necessário para a partilha de informações sobre as várias auditorias ou outro tipo de lutas contra a dívida. A plataforma preencheu um espaço fundamental de partilha de informações, onde os grupos podiam se conhecer e inspirar-se mutuamente, por lidarem com questões semelhantes. A iniciativa permitiu a partilha de ferramentas e de recursos, mas também a discussão de ações e de estratégias de mobilização em que cada um estava envolvido. A plataforma ajudou a consolidar uma rede internacional onde era possível colaborar e manifestar solidariedade, identificar dias importantes de ação comum e planos para coordenar atividades coletivas. Objetivos das auditorias A observação do processo de formação de dívida tem um objetivo educacional bastante amplo. Facilita a educação popular sobre um assunto que comumente utiliza termos e processos considerados complicados. As auditorias podem também funcionar como repositórios de conhecimento sobre um determinado local, e um meio para troca de informações sobre os mecanismos da dívida, operando, por exemplo, em autarquias locais, empresas estatais, ministérios, e tendo como base as contribuições de todos os participantes. Sendo um processo educativo, a auditoria é também fundamental para o desenvolvimento de argumentos e provas que permitam responsabilizar governos e autoridades pelos seus empréstimos. Pode ajudar os movimentos a articularem reivindicações sobre a anulação da dívida ou mobilizar procedimentos legais contra as dívidas ilegítimas, ilegais e injustas. Nesse sentido, pode ser um catalisador de mobilizações pela justiça social (ver: Fattorelli, 2014). Melhorar a responsabilização e a transparência, capacitar os cidadãos e reforçar o seu poder no sentido de supervisionarem e questionarem “os atos daqueles que os governam… é parte intrínseca da democracia… O fato de os governos, que continuamente criticam a imprensa com a sua retórica sobre transparência, se oporem às auditorias cidadãs é um sinal de que as democracias atuais se encontram numa situação lamentável. A necessidade permanente de transparência nos assuntos públicos está se tornando uma necessidade social e política vital” (Millet e Toussaint, 2012). A criação de redes e a divulgação são atividades-chave levadas a cabo por muitas auditorias cidadãs. Incentivar a informação sobre o funcionamento real da economia permite a articulação de alternativas mais justas; saber mais sobre o atual mecanismo de dívida possibilita a criação de alternativas que respondam às reais necessidades e interesses da sociedade, em detrimento das necessidades de ‘mercados’, elites e credores (PACD, 2013). Uma auditoria da dívida tem como principal objetivo analisar as características da dívida e a política de endividamento seguida pelas autoridades. Tendo em vista as pressões que são exercidas em torno dos orçamentos públicos no sentido de dar prioridade aos interesses dos credores, os cidadãos têm exigido saber como foram contraídas as dívidas e onde foi gasto o dinheiro (ver, por exemplo, Laskaridis, 2012 e 2014a). As perguntas feitas incluem saber: o que levou o Estado a assumir dívidas cada vez maiores? Quais os fins políticos e os interesses sociais que levaram a contrair a dívida? As dívidas foram usadas de acordo com o propósito inicial? Quem se beneficiou dos empréstimos? Quem são os credores e que condições impõem? Como foram tomadas as decisões para contrair os empréstimos? Que parcela do orçamento público é usada para pagar a dívida? Como o Estado financia o pagamento da dívida? Quais os juros pagos e quanto do montante principal já foi reembolsado? Como foi que as dívidas privadas se tornaram dívidas públicas? Quais as condições de cada resgate bancário? Quanto custaram? Quem tomou as decisões? Como afirma a iniciativa de auditoria da dívida dos cidadãos espanhóis, a PACD: “Há dívidas que implicam violações de direitos humanos ou de direitos econômicos, sociais e culturais da população, que ameaçam o desenvolvimento de uma vida digna, que geram desigualdade beneficiando uma elite e prejudicando a maioria da população, que enfraquecem a soberania ou que resultam de corrupção ou de má gestão do governo. Estas dívidas podem ser consideradas ilegítimas, injustas ou mesmo contrárias aos princípios do direito internacional” (PACD, 2013). Texto escrito por Christina Laskaridis, Nathan Legrand e Eric Toussaint. Publicado na íntegra em: www.cadtm.org/As-lutas-atuais-contra-a-divida Tradução em português brasileiro: núcleo baiano da Auditoria Cidadã da Dívida Referências Fattorelli, M. (2014). Citizen Public Debt Audit Geneva. English Edition, Liège, Belgium: CETIM/CADTM. Laskaridis, C. (2012). Why audit the Greek debt Journal of Modern Education, Vol 168 (em grego). Laskaridis, C. (2014a). Mechanism of Debt Levga Periodical, Issue 14 (em grego). Millet., D. and Toussaint, E. (2004), Who Owes Who? London, UK: Zed Books. PACD Plataforma Auditoria Ciudadana de la Deuda, (2013), What the PACD means by citizens debt audit and illegitimate debt, Retrieved from http://auditoriaciudadana.net/2013/06/08/what-the-pacd-means-by-citizen-debt-audit-and-illegitimate-debt.
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SOBRE O BLOG...O movimento da Auditoria Cidadã da Dívida agora conta com este espaço, desenvolvido para dialogar com você que está em busca de novos caminhos e linguagens que descompliquem o tema da dívida pública na sua cabeça. Este blog é uma iniciativa do núcleo baiano da Auditoria Cidadã da Dívida para uma educação econômica e emancipadora da população brasileira. O núcleo identificou, após algumas atividades de formação com grupos sociais diversos, a importância de se construir um espaço para dialogar com principiantes no assunto. O propósito deste blog é tornar mais acessível esse tema que muitas vezes parece um “bicho de sete cabeças”. Se você já acessa o conteúdo informativo da página da Auditoria Cidadã da Dívida, contará a partir de agora com o blog “Descomplicando a dívida pública”, uma ferramenta que reunirá conhecimentos sobre a dívida pública a partir de outras linguagens – como aquela que é própria dos filmes/documentários –, com textos e informações compreensíveis. Construiremos coletivamente este blog trilhando os caminhos da popularização do conhecimento. Esperamos que este seja mais um instrumento de formação crítica na luta contra o sistema da dívida que também tenta se impor por meio de uma linguagem complexa, servindo exclusivamente para afastar as pessoas desse tema que é decisivo para a garantia dos nossos direitos básicos como saúde, educação e habitação. |